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1por cento da Sé Square, um outro olhar sobre o centro geográfico da maior cidade do País

  • Por ANDRÉA ASCENÇÃO*.
  • 23 de jan. de 2015
  • 10 min de leitura

Onde a luz verde precisa se cercar de energia

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A Praça da Sé é um dos espaços mais conhecidos da cidade de São Paulo e foi palco de muitos eventos importantes para a história do país

A Praça da Sé é um lugar onde tudo acontece ao mesmo tempo. Próximo à realização da Copa do Mundo de 2014, ela pode amanhecer com um nome diferente: Sé Square, informa em letras brancas a placa no alto dos postes. Numa tarde de sábado pode-se contar cinco engraxates com suas cadeiras vazias; nove bancas de jornais; alguns dos 61 sinos da Catedral Metropolitana da Sé chamando os fieis com uma sequência rápida de badaladas, seguidas de uma breve pausa e outra sequência mais alta e melodiosa produzida pelo maior carrilhão de sinos da América Latina; duas placas que sinalizam ser proibido estacionar, uma delas de cabeça para baixo; anúncios de emprego para porteiros, sem exigência de experiência, com salário de R$ 938,04 + benefícios, colados em postes; um aglomerado de 39 homens e uma mulher em volta de um mendigo, enquanto um pastor encharcado de suor confessa já ter andado na rua sem camisa e usado cabelo moicano pintado de loiro; uma senhora embaralhada com os próprios pés, caindo de joelhos sobre as pedras brancas da calçada. Três transeuntes ajudam ela a se recompor. Nada grave acontecera.

Todos os dias é possível encontrar buracos retangulares nos pés das bases de alguns dos postes ornamentais históricos. Isso, porque as tampas de ferro que guardam a fiação elétrica são roubadas e vendidas para fundição.

“99% da população vai dizer que a Praça da Sé é perigosa. A molecada com cigarro de maconha na mão vem pedir coisas. É normal. Quem vem de fora estranha, mas quem é daqui acha natural. A segurança aqui é 10”, conta o jornaleiro José Hamilton, sorrindo para a policial que entrara em sua banca de jornal pedindo um carregador de celular emprestado. O nordestino que trabalha há 19 anos, das 5h30 às 17h30 na Praça da Sé, procura ajudar a conhecida, mas por ora não encontra nada.

Ele chegou em São Paulo no ano de 1986, e de lá para cá seus olhos testemunharam tanto acontecimentos que foram contados nas páginas de jornais, como situações inusitadas, vivas apenas em sua memória e na das pessoas que estiveram na Praça da Sé.

Há alguns anos uma Parati, modelo de carro popular lançado em 1982, apareceu no meio da Praça da Sé embrulhada para presente, com um laço. “A amiga ali – aponta José para a colega, dona da Banca Central – deu de presente para o namorado, e vieram aqui entregar”.

De repente suas lembranças são interrompidas.

– Ô, Cebola? Chega aqui, caralho! – grita uma moradora de rua, descendo, com pressa, a Praça da Sé.

“Não tem o que fazer. Não adianta internar uma pessoa que dali 30 ou 90 dias está na rua e é tratada como doida. A política pública não tem como melhorar o ser humano. Se tirar eles daqui, vão para outro canto”, opina José.

Um grupo de moradores de rua dorme no chão, ao redor da estátua de Padre Anchieta. Uma mulher sentada participa de um monólogo sem sentido. José aponta a cena e sente “cheio de zumbi na rua”. “Quando tem casamento de bacana, a polícia vem dar banho e comida”, conta.

Contudo, José não reclama, ele afirma que nunca teve qualquer problema com os dependentes químicos. “Aqui é bom demais. Estar no meio do público é divertido. Diversão ao ar livre”. Ele gosta dos artistas de rua.

A Praça da Sé é como um teatro a céu aberto. A frente da Catedral Metropolitana descortinam-se 31 troncos esbranquiçados de Palmeiras Imperiais, que podem viver até dois séculos e checar a 40 metros de altura. Sem paredes para isolar o som, músicos, artesãos e líderes religiosos disputam a atenção do público.

Na calçada entre as bancas de jornais Mônaco e Pato, dois bonecos com cabeças de caveiras dançam e tocam bateria. Um deles tem o crânio maior, branco, com sobrancelhas e bigodes pretos pintados. Os cabelos compridos são feitos de correntes de metal prata. O esqueleto é montado com uma sequência colorida de tampas de garrafas pet e as mãos foram algum dia de bonecas de plástico. Elas estão amarradas a barbantes que se prendem a um anel no dedo anelar do manipulador. O outro boneco não tem a parte de baixo do corpo, a cabeça é cinza e o cabelo dourado foi colado em estilo moicano. Em seu tronco há um pedaço de madeira que funciona como o bumbo de uma bateria real ao comando do pé direito do controlador. Os tambores da bateria das caveirinhas feitos de latas de azeite e banha estão pintados de amarelo, assim como o banco dobrável de madeira que suporta o artista de rua conhecido

como Caveirinha.

"A Praça da Sé é como um

teatro a céu aberto"

Arruelas de metal, comumente usadas para vedar telhas, fazem as vezes de pratos da bateria pregadas ao tambor. No pé esquerdo de Caveirinha, uma espécie de cone usado em volta do sapato ao bater numa vasilha de metal encorpa o ritmo da música.

“De que me adianta viver na cidade

Se a felicidade não me acompanhar

Adeus, paulistinha do meu coração

Lá pro meu sertão, eu quero voltar

Ver a madrugada, quando a passarada

Fazendo alvorada, começa a cantar

Com satisfação, arreio o burrão

Cortando estradão, saio a galopar

E vou escutando o gado berrando

Sabiá cantando no jequitibá”

Presas ao pedestal do microfone, Caveirinha traz sempre algumas folhas de papel escritas à mão. Na manhã do dia 1º de março, ele toca duas vezes a música de Belmonte e Amaraí, “Saudade da minha terra”. Uma das mais pedidas, por isso, ele pouco precisa ler a letra da canção. O som que tira do violão aprendeu sozinho. Há oito anos, ele deixou Curitiba, capital do estado paranaense, e, desde então, percorre diversas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul “cantando de coração”.

Todos os detalhes do espetáculo de rua criado por Caveirinha são inspirados em outros artistas que ele assiste Brasil a fora. “Aí você vê os caras e pensa: vou inventar uma pessoazinha pra ajudar”. Caveirinha acabou criando dois parceiros, os bonecos. “Porque ajuda, né? Você cantando e tocando violão, então tem uma colherzinha. Os caras aí forma com mais dois, três, cinco... aí se não dá certo, já começa briga e aquela coisarada. E assim não, eu mexo tudo enquanto estou cantando. Com eles (os bonecos) não tem briga, não dá despesa nenhuma”, prefere o cantor, violonista e controlador de caveirinhas.

Antes da virada do milênio, o artista que hoje tem o bigode raspado, leva os cabelos quase sempre presos em um rabo de cavalo e não dispensa um chapéu, deixara o ramo da construção e passara a se apresentar como artista de rua.

Quando chegou em São Paulo, Caveirinha fez suas primeiras apresentações dentro de vagões de trem e metrô da cidade. Nos dias em que havia jogos de futebol, os usuários dos transportes coletivos lhe perguntavam para que time ele torcia. Caveirinha é Santista, mas antes de responder queria saber o time de seu público.

– Você é o quê? – devolvia ele, e emendava na resposta do interlocutor:

– Sou também...

“Aí entrava no outro vagão, já era palmeirense. Eu vou criar causo com os outros por causa de time? Não ganho nada”, pensa Caveirinha, que deixou de se apresentar nos vagões depois de ter nove instrumentos apreendidos, quatro deles cavaquinhos. “É que é proibido. Fazia, mas sabia que era proibido”. Foi então, que Pedro Barbosa ganhou uma das caveirinhas, arrancou a cabeça, começou a estilizar os companheiros de palco, adotou o apelido de Caveirinha e partiu para as ruas do centro da cidade. “Rapaz! Para bater essa cidade aqui não tem. Tem cidadinha que é do tamanho do ovo, cê fala aqui e escuta ali. Mas você ganha só um dia. Aí no outro dia já não ganha nada, porque é muito conhecido, muito pequenininho. Agora São Paulo é muito bom. Cê tá aqui hoje, amanhã tá um pouco mais pra lá e o pessoal é tudo diferente”, percebe Caveirinha sobre a vantagem de se apresentar na região central da cidade que tem aproximadamente 19 milhões de habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualizados no dia 19 de março de 2014.

"Por um instante, o comprador para ao lado

de Caveirinha e dança como se tocasse

um violão invisível. Ao final da música faz

uma breve reverência, inclinando o corpo

para frente, como se o artista fosse ele"

A Praça da Sé é um dos mais lucrativos palcos para o Show de Caveirinha. “Sempre tem um pessoal que planta aqui. Aqueles peruanos”. O público que assiste em pé é predominantemente masculino e vai chegando cada vez mais próximo. A execução de duas músicas é suficiente para formar meio círculo de gente em frente ao artista de 58 anos. Alguns fãs são itinerantes, outros estão sempre por perto. Um deles também trabalha na Praça da Sé. Ele veste um colete igual aqueles que os jogadores usam para separar os times de futebol durante os treinos. Mas neste colete pode-se ler de longe “compro ouro”. Por um instante, o comprador para ao lado de Caveirinha e dança como se tocasse um violão invisível. Ao final da música faz uma breve reverência, inclinando o corpo para frente, como se o artista fosse ele.

Uma mulher brota entre as pessoas da plateia e logo toma conta do centro das atenções. Ela dança na maior parte do tempo de olhos fechados, solta o pescoço e balança a cabeça para os lados e para frente, o que deixa seus cabelos negros caírem sobre o rosto suado. A coreografia segue com giros lentos, os braços abertos e rebolados curtos salpicados por toda a extensão do meio círculo formado pelo público. Quando “Tordilho Negro” – canção de Teixeirinha, que Caveirinha aprendeu quando viajou para o Rio Grande do Sul – começa, ela puxa a parte de trás de sua blusa preta para baixo, deixando, além dos ombros, o sutiã vermelho aparecer. A certa altura, Caveirinha brinca que vai levar a “bailarina” junto para os próximos shows.

Duas garotas carregando sacolas de compras nas mãos atravessam a rua, sem tirar os olhos de Caveirinha, pelo menos até onde a vista pode alcançar.

O músico costuma tocar e cantar músicas que o público pede, mas às vezes arrisca alguma de sua autoria.

Quando gritos de uma massa ecoam pelo país inteiro é porque algum sentimento tomou conta do espírito dessa sociedade. Momentos como esse estimulam a necessidade de expressão. Os artistas, sensíveis que são por natureza, costumam decifrar rapidamente o desejo coletivo, botando tudo para fora. Foi nesse contexto que nasceu “Isabella”, uma música baseada no pesar e na exigência de justiça que se alastrou pelo Brasil a partir do dia 29 de março de 2008. Na ocasião, uma criança de cinco anos, chamada Isabella Nardoni, morreu em São Paulo, após ser esganada pela madrasta e jogada do sexto andar do prédio onde morava, pelo próprio pai. Ambos foram condenados por homicídio triplamente qualificado.

“Primeiro peça a Jesus O nosso pai verdadeiro Que me dê inspiração Pra mim, meu companheiro Pra relatar este fato Que chocou o mundo inteiro Não sabia da sua morte O asar bateu mais forte Dentro do apartamento Este fato que eu falo É da menina Isabella Com cinco anos de idade Foi jogada da janela Tem que mofar na prisão Quem fez este fato a ela Já estão presos na cadeia O safado e a safada Que tirou a vida dela

Uma menina feliz

Com toda a vida pela frente

Não sei se ela foi jogada

Ou caiu por acidente

Merece pena de morte

Quem matou esta inocente

Eles já estão pagando

O erro que cometeram

Dentro de quatro paredes

Dia vinte e oito de março

Que mataram essa criança

Era uma menina linda

Muito alegre e sorridente

O seu pai ficou maluco

Foi na onda da serpente

Isabela foi com Deus

Na hora que faleceu

Deixando os sonhos com a gente”

Outro dia Caveirinha foi arrancar um dente no consultório do dentista que trabalha no prédio da Praça da Sé, em cima da loja Nelson das Bolsas. Chegando lá, o dentista desabafou:

– Caveirinha, sempre vejo você cantando. Agora, vem aqui, eu vou ligar o celular... vê se você escuta o celular. Eu não escuto.

O dentista reclama do som alto que outros artistas de rua fazem na Praça da Sé e nas redondezas. Caveirinha se preocupa com isso também. “Os barulhos vai tudo lá. Tudinho nos prédios. Aí a pessoa acha ruim”. Ele conta que ninguém mexe nos cabos de seu amplificador. “Não criei confusão com ninguém, nunquinha. É assim, eu falo, se tiver perturbando por causa do barulho, eu mudo de lugar”.

O Show de Rua do Caveirinha dura o tempo limite da bateria que alimenta seu amplificador Peavey – cerca de três horas, incluindo as pausas para limpar a garganta, com alguns goles de café preto, que Pedro traz dentro de uma garrafa de plástico. Durante os intervalos, ele tira os óculos escuros e enxuga o rosto com uma toalha de pano. É nesse momento fãs se aproximam, alguns perguntam se ele tem um CD para vender.

É de uma mochila pendurada na alça do carrinho improvisado para carregar todo o equipamento de som do show, que ele tira quatro unidades do CD que gravou com um dos quatro filhos. “Tem oito músicas cantando aí, eu e um moleque meu. Só que ele faz a primeira voz e eu faço a segunda”, esclarece para que os fãs não estranhem ao ouvirem uma voz diferente.

Quando a música acaba, o artista anuncia ao microfone a “caixinha do Caveirinha”. Certa vez um casal parou a sua frente e disse:

– Vamo dá uma força. Coitado do Caveirinha...

– Não senhor! Pode pegar o seu dinheiro de volta na caixinha. Meu trabalho é honesto. Não sou cego. Eu uso o óculos que faz parte do Show do Caveirinha. Se achar de acordo de ajudar, a caixinha tá aqui, ó – disse apontando para frente, onde uma caixa de madeira fica no chão.

Várias pessoas da plateia depositam dinheiro, na maioria das vezes moedas. É uma espécie de couvert artístico pós-pago, apenas por quem sente vontade de remunerar Caveirinha pela apresentação. E não tem valor tabelado.

Uma jovem moradora de rua, permanece em pé, com os pés descalços, enrolada em uma manta verde de tom claro. Ao final da última canção ela sorri, bate palmas, caminha para frente e deixa na caixinha de Caveirinha um pirulito em formato de coração.

(Continua)

A grande reportagem acima, originalmente um trabalho de 50 páginas, foi dividada em três partes pelo jornal O Ensaio. As continuações serão publicadas nas próximas semanas.

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*Andréa Ascenção é jornalista e escritora, especializada em produção de Jornalismo Literário pela ABJL. Biógrafa da banda Ultraje a Rigor. Vencedora nacional do Prêmio Clovis Barbosa, destinado ao Melhor Texto de Jornalismo Literário, em 2014, pelo perfil “O homem da segunda chance”. Pode ser encontrada pelo e-mail andrea.ascencao@gmail.com ou pelo endereço de perfil www.facebook.com/andrea.ascencao.

 
 
 

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