top of page

O desentortar dos pregos

O perfil de uma acumuladora compulsiva de objetos.

Primeiramente foi preciso aquecer a panela/milho porque, muitas vezes, ele não está bem seco. Ela podia ter usado uma pipoqueira, mas escolheu uma simples panela para o preparo da pipoca. Logo após aquecer a panela com o milho dentro, jogou todo o conteúdo para outra panela, juntamente com um pedaço de banha. Aos poucos os milhos começaram a estourar na panela velha, já bastante queimada no fundo e com amassadelas provocadas pelo calor do fogo. Para cozinhar a pipoca foram utilizadas duas panelas, uma era sua. Por não conseguir se desfazer da peça, levou consigo o objeto para a casa de sua irmã, recém falecida, a escondendo atrás do fogão. A velha panela usada faz parte do arsenal de objetos acumulados por Dona Zaura (nome fictício).

O milho foi retirado de dentro de uma garrafa plástica prensada por leves tapas. Muitos “gêneros alimentícios”, como ela chamava o arroz, feijão, o próprio milho e grãos em geral, eram separados de suas embalagens originais e armazenados em garrafas PETS lavadas. Após a lavagem eram colocadas atrás da geladeira, entre o vão da parede e o eletrodoméstico para secar.

Esses gêneros eram introduzidos por um funil específico, criado pela dona, para se adequar ao gargalo da garrafa. O funil era a união de duas metades de gargalos com tampas. Para que o grão pudesse escorregar através do objeto, foi feito um furo entre duas tampas unidas uma contra a outra e assim lixadas e fixadas com fita adesiva. O processo era alternado entre porções de grãos e porções de batidas na garrafa para comprimir o ar existente. Esses alimentos armazenados serviam como estoque para serem dados às pessoas que deles precisassem.

"Aos poucos os milhos começaram a estourar na panela velha, já bastante queimada no fundo e com amassadelas provocadas pelo calor do fogo". (foto ilustrativa)

Daqui a seis meses, Dona Zaura completará 80 anos. Seu aspecto físico atual contraria os 80kg que chegou a ter na adolescência. Aos 16 anos se orgulhava de ter coxas grossas, bunda grande e uma cinturinha. Ainda quando jovem usava uma saia como medidor de gordura. A vestimenta lhe servia com exatos 70kg. Porém, quando a saia não fechava, contestava o seu peso no qual considerava aceitável 69kg e não os 70kg. Hoje, perdeu a vaidade em relação ao corpo, emagreceu muito rápido mas também já conseguiu recuperar recentemente 4kg. A residente da casa 67* da rua Landel de Moura, no bairro Tristeza - Zona Sul, possui 1,73m, dorme em cama de solteiro e também já morou no Ceará.

Com o fim de seu casamento, decidiu se tornar independente. Criou seus filhos e diversas empresas em seu nome. Hoje vive de aluguel de metade de sua casa. Não costuma convidar ninguém para a visitar pois não há mais espaço. Também por causa de uma empregada que teve e que acabou por roubar um pouco dos 3 mil reais de dentro de seu quarto. Antes de começar a juntar objetos, todas as suas economias eram guardadas em uma caixa metida em baixo da cama. Em um dia de limpeza, a empregada achou a tal caixa e retirou R$ 600. Após a constatação do roubo, ela optou por não ter mais empregada.

Uma casa de 350m², de família de classe média alta pode chegar a possuir 3/4 quartos e 3 banheiros. O porão utilizado para guardar esse acúmulo de lixos tinha exatamente essa medida. A frente da casa é arborizada e tem o jardim bem cuidado. Tal imagem não deixam para um simples pedestre motivos para pensar que ali mora uma acumuladora. Dentro do imóvel, até mesmo na entrada do porão há lixo.

Logo que se entra na casa, virando à direita há um espaço para algo que era para ser uma academia, mas que não deixa de estar imune de objetos. Não é uma casa, mas um porão. A circulação só é possível através de um pequeno caminho descoberto de entulhos. Na mesma entrada para chegar ao quarto, há o caminho para a cozinha. Em conta de objetos também acumulados nesse cômodo, o ambiente se torna sujo. Lixo é apelido para as coisas, móveis e sacolas. Antigamente esse porão servia como garagem.

Agora um espaço que é um porão, denominado casa e ex garagem serve como estoque. Estocados em sua casa há oito camas, três geladeiras e cerca de seis ou sete rádios. Há também fornos, sacola de roupas e tênis, secadora de roupa, andador, cercadinho e cadeira de almoço para criança. Assim como potes, copos da Coca Cola, brinquedos do McDonald’s e diversos cabos de guarda chuvas que usava para trocá-los e consertá-los. A incapacidade e a falta de desejo de acabar com os seus objetos tornam impossível fazer com que ela se desprenda dessas coisas. Seu neto André (nome fictício), gostaria de fazer uso do espaço para montar uma academia, sendo ele um formando de Educação Física, porém isso ainda não será possível.

O mundo das substituições, onde um objeto quebrado é rapidamente trocado por um outro semelhante ou igual, não era possível na época de Dona Zaura. Sua avó executava o “desentortar dos pregos”. E assim se deu início aos acúmulos. Seus primeiros objetos eram guardados no armário do banheiro que dividia até então com o seu marido. Mas, muito antes disso, viu a mãe acumular inúmeros papéis em um dos três quartos de sua casa que continham informações sobre a contratação de empregados.

Com a grande quantidade de itens reunidos, às vezes ela não consegue encontrar determinados objetos, o que a entristece. Durante sua vida não houve faltas de tentativas de se desfazerem de seu lixo. Certa vez Zaura se deparou com a cunhada mexendo em seus pertences e os pondo para fora de casa, ela estava fazendo uma “limpeza”. Quando esta foi questionada, respondeu: “Tem que limpar Dona Zaura”. Algumas coisas foram levadas pela mulher de seu filho, como os lençóis de casal bordados por ela mesma. Ainda sem a consultar, ficou sabendo mais tarde que a cunhada havia dito a sua empregada para levar o que lhe parecesse útil. Contando a história ela afirma e questiona: “ As coisas são minhas por que é que estão mexendo?”

Ela mesma uma vez já tentou se desfazer de seus objetos, mas acabou passando mal. Não sentia fome, passava o dia deitada e adoeceu. Por isso mesmo que não investe em outras arrumações, porque diz que se for para fazer algo contra ela, no caso eliminar os seus lixos, ela adoece. Com isso, dona Zaura adotou uma prática de deixar a arrumação prometida para o amanhã.

O acúmulo de lixo é relacionado pelos seus familiares com a sua idade. Por não ser compreendida, ela acaba por não se compreender. Fitando ora as mãos e ora o chão, reflete e indaga sobre seus atos. As opiniões dos seus familiares pesam sobre sua concentração de objetos. Desconcertada ela pergunta: “Será que estou fazendo algo errado?”. Ninguém responde. É uma pergunta retórica. Quando as pessoas procuram-na para pedir algo emprestado, dona Zaura sente-se lisonjeada ao ouvir os pedidos, pois gosta de dizer que em sua casa tem aquilo que lhe foi solicitado. Dessa forma, ela crê ser prestativa.

"O acúmulo de lixo é relacionado pelos seus familiares com a sua idade. Por não ser compreendida, ela acaba por não se compreender" (foto ilustrativa)

Por ser uma "Acumuladora Compulsiva", seu desejo de ajudar acaba por não se concretizar. As doações tanto de roupas como de alimentos não são feitas porque justamente ela não consegue se desvincilhar de seus objetos. O impulso de apego excessivo por objetos é o que caracteriza o acumulador. Esses objetos se tornam elementos simbólicos para o dono, que acabam por simbolizar a própria neurose uma vez que a fomentação da doença é exposta para fora, para os objetos. O ego não tem consciência de que está tornando o ambiente um lugar inabitável e insalubre e é dominado pelo consumismo das coisas. O acumulador compulsivo termina por perder o controle do espaço físico.

O relacionamento com outros indivíduos é prejudicado, pois a pessoa só consegue se relacionar com os objetos. O impulso de acumular age como uma anestesia no acumulador, fazendo com que ele não consiga ter uma reação em relação aos seus objetos, ao ponto de não conseguir se desfazer deles. O tratamento para reverter essa situação envolveria duas etapas, que consistem na presença de uma organizadora no espaço físico do paciente juntamente com uma terapeuta. O trabalho seria alternado entre os dois profissionais, no intuito de dar sustentação ao paciente para que possa conseguir fazer uma seleção sobre seus objetos. Embora dona Zaura tenha percepção de sua grande concentração de roupas, móveis e objetos, se desprender deles se torna difícil.

_______________________

*Neda Camiza era estudante de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) mas trancou a faculdade para fazer um pequeno "mochilão" pela América do Sul guiada pela vontade e necessidade de poder dar voz, ouvir e contar histórias, fato que a tornou amante do Jornalismo Literário. Por isso mesmo que, após a viagem, retorna ao seu curso. Pode ser encontrada pelo e-mail camiza.neda@gmail.com.

     apoio institucional:
      O ENSAIO nas redes:
  • Facebook Basic Black
  • Twitter Basic Black
bottom of page