Guilherme de Almeida: uma breve biografia
- Por KAREN KIPNIS*.
- 9 de jul. de 2015
- 9 min de leitura
Buena dicha! A história de um paulistano que se confundo com a própria São Paulo
Estação da Luz: inaugurada em 1901, foi ali que a cidade de São Paulo começaria para o menino Guilherme de Almeida, vindo de Campinas dois anos depois. Em 1903, o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito, onde o pai, Dr. Estevão de Almeida, lecionaria, estava sendo apenas fundado.
Mas quando Guilherme nasceu, em 1890, São Paulo era bem diferente. Então, a cidade contava com apenas 65 mil habitantes e o jornal A Província, naquele ano, passaria a se chamar O Estado de São Paulo. Em 1891, seria inaugurada a primeira via pública asfaltada e arborizada da cidade, a Avenida Paulista e, no ano seguinte, seria a vez o Viaduto do Chá. Desvairada, a cidade passaria a abrigar nada menos que 240 mil habitantes. Em torno de uma década, praticamente quadruplicou.

Em Sampa, o menino recém–chegado e trajando calças-curtas morou com a família na no Bairro Luz (“cartão-postal obrigatório”) no Largo do Jardim, número 1. Uma nota rural: entre a rua São Caetano e o Quartel da Luz, a infância com gosto de amoras comidas ao sol brincava sob as árvores do pomar, ao fundo.
O que nem todos sabem é que, nem sempre, o menino ia direto da casa ao Ginásio São Bento. Vagando pela cidade, certa vez, indo pela rua Florêncio de Abreu, passando a Confeitaria Minerva, dobrou à esquerda e...encontrou uma trupe de ciganos que acabara de assentar acampamento num terreno baldio. A nota lúdica: Guilherme não apenas familiarizou-se com esta “gente estranha”, como também travou amizades e, - com gosto e alegria -, cabulava a aula.

Os carroções pintados de cores vivas; seus cavalos normandos de imensos cascos; o urso ensinado que dançava ao pandeiro; suas ciganas folhudas e enfeitadas que deitavam cartas e ditavam a buena dicha; o medo que as famílias tinham desses “ladrões de crianças”...tudo o atraia. Gostava de conversar com a ciganinha e conferir cada detalhe dos adornos tilitantes que a encantavam ainda mais.
“Você é de minha raça”, disse-lhe finalmente o chefe cigano, estendendo para o menino, como presente, um pequeno brinco de ouro. “Siga com a trupe, venha conosco”. Ficou no vai, não vai...e não foi.
Estamos em setembro de 1959. No balanço da rede do jardim de inverno de sua Casa da Colina (rua Macapá, 187, Pacaembu), Guilherme se recorda de uma outra cigana, a que leu sua mão na Rue de Balzac, em Paris, enquanto esteve no exílio dos “criminosos” do Nove de Julho de 1932.
Das ciganas, voltou o pensamento para a tropa se exercitando no Quartel da Luz; depois para Largo do Jardim; para os primeiros automóveis de São Paulo, para o Ford de Bigode; seus pilotos, suas luvas e seus óculos grossos de corrida. O parará-tim-bum das bandinhas animadas, o tocador de pratos (queria ser o corneteiro). Sentia falta do orgulho cívico nas paradas do Sete de Setembro de então.
Entretanto, como havia dito, estamos em setembro de 1959 e, há mais ou menos uma hora, o poeta deixou o jardim de inverno e subiu a escada de sua mansarda. No sótão, um silêncio amadeirado cheirando a livros, cristais e bosque. Aos 69 anos, no último degrau, para, um instante, e sorri. Respira fundo e apressa-se em descortinar seu gabinete de trabalho. Ali, uma floresta de signos o religa a seus paraísos interiores.
Sobre a mesa de trabalho, minilivros como D. Quixote ou poemas de Carducci, uma lupa, um sinete e, entre outros, um fauno em porcelana, made Casa Rosenthal, admirando uma borboleta.
Sobre pedestais, esculturas: sua cabeça e de sua esposa, Baby de Almeida. Tal qual musa, Sóror Dolorosa, um presente do amigo e escultor Victor Brecheret - em homenagem a sua obra O Livro de Horas de Sóror Dolorosa (1920)-, remete-o à Semana de 22 no Theatro Municipal.
Nas paredes, caricaturas desenhadas por amigos, como Ferrignac (Ignácio da Costa Ferreira), cinzeiros, medalhas, efígie comemorativa dos 50 anos da publicação de Nós (1917), seu polêmico primeiro livro de poemas. Pegada à diminuta cama, imagens de autores que admirava, como Rabindranath Tagore e Paul Verlaine.
Ao lado da pia embutida em móvel de madeira (uma ideia genial), repousa um arquivo com fichas sobre a vida de gente de cinema (predominantemente astros de Hollywood), recheadas de informações que, mais tarde, fariam sonhar os leitores de sua coluna “Cinematógraphos”, trabalho iniciado em 1926 no jornal O Estado de São Paulo.
Dez de junho de 1931: “O Paramount, fiel ao imutável gostinho dos velhos e verdadeiros fans, abre mais uma vez a sua tela, como uma grande janela, para o Oeste. Aquele bom Western plot: o rancho em perigo, com a menina bonita, o bom papai, o famoso cowhand e o seu companheiro grotesco... “No Caminho de Santa Fé” (The Santa Fe Trail) devia ser uma fita de Richard Arlen e Rosita Moreno; mas ficou sendo uma boa fita da pequena Mitzi Green e do gordo Eugene Pallete. Voltas que o mundo, isto é, que a manivela da câmera, dá...”.

Muitas canetas, um fuzil, uma granada, um capacete, máquinas de escrever, quadros, o telescópio, um calendário de mesa em couro verde. No centro do cômodo, a primavera se anuncia: terça-feira, 15 de setembro de 1959. Sobre a diminuta caminha, G. de A. está sentado agora. Não tarda e O Correio da Manhã já terá o nome do novo Príncipe dos Poetas Brasileiros.
Apesar de ocupar, há 29 anos, a cadeira número 15 da Academia Brasileira de Letras, não pode deixar de se lembrar do que Agenor Barbosa comentou sobre certos “incapazes” julgarem sua poesia como uma “arte para poucos”. O fato é que, como Mário de Andrade havia lhe dito e publicado no Diário Nacional (1930), foi geral, nos meios literários malditos, o espanto causado por sua eleição para substituir Amadeu Amaral na ABL.
Acariciando Ling-ling de Pinerolo, o pequinês que acabou de se aninhar em seu colo, comenta sobre o quanto admira e respeita os amigos Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo e Mauro Mota, artistas do verso que também concorrem ao prêmio; mas, hmmm, como adoraria vestir a coroa, ou melhor, sentar-se na cadeira - coincidentemente também de número 15-, outrora ocupada por Olavo Bilac (1902), Alberto de Oliveira (1918) e Olegário Mariano (1937).
Ora, o campo literário, refletiu, como o campo do poder, é simultaneamente um campo de forças e um campo de lutas entre os já estabelecidos e os que querem se estabelecer. Uns visam transformar, outros conservar a relação de forças estabelecida. E lembrou-se, ainda uma vez, do artigo publicado pelo amigo Mário: “em literatura, como em todas as outras formas sociáveis da atividade humana, a divisão mais primária que a gente poderá estabelecer é a de poderosos e malditos. Poderosos são os que têm já oficializada a sua catalogação social. Os malditos, bem mais difíceis de definir, meu Deus!, somos “nós” ”.
Enfim, se tudo der certo, deseja comemorar a vitória com poucos amigos, um jantar, por volta das oito, no Bar Riviera ou no Restaurante Star City. Baby cuidará da reserva.
Lá fora, no alto do Pacaembu, cheiro de sol e asfalto novo, crianças brincando de bola, empinando papagaios, jogando amarelinha. Pela janela, Guilherme procura os ninhos de gaviões que já não existem (e existiram, aos montes), na árida região, quando mudaram-se para aquele fim de mundo, há 13 anos, em 1946.
Em instantes, o telefone poderá soar e, peut-être, seja conveniente rabiscar algumas palavras. Afinal, o próprio Manuel, em 1925, ao lhe autografar um livro, confessa: “A Guilherme de Almeida, com a minha inveja: Manuel Bandeira”. Ansioso, busca lembra-se de um sonho ocular, enquanto descansa a vista na paisagem verde que não cansa de avistar. Maritacas e sabiás, inevitáveis, trazem-no de volta ao sótão.

Uma das paixões do poeta eram seus cães de estimação. Na foto um deles: Ling-ling
Mecanicamente, senta-se na poltrona favorita, acende o cigarro e beberica um House of Lords. Fecha os olhos e recorda dias gloriosos, como o weekend de outubro de 1929, no Guarujá: um verdadeiro loureiro do passado. Grande Hotel de La Plage, manhãs de maillot e volleyball na praia de oiro...o coktail no bar, o almoço em maillot no terraço: sugestão muito europeia do velho Lido...figurinhas muito ritzy como Bénito, Lepape ou P.Mourgue, que ficaram vivendo em sua memória, coloridas e leves.
Quando, a brasa, já morta na ponta da cinza inteira do cigarro...o Correio chegou. Baby grita ao pé da escada. Ling corre na frente, abanando dezoito degraus, infinitos como uma escada de Jacó às avessas, que o devolve ao mundo dos mortais:
- Sim?!
- Caro Príncipe dos Poetas Brasileiros! Com a expressiva maioria, 320 votos, 156 a mais que o segundo colocado, o poeta Manuel Bandeira, o senhor acaba de vencer o concurso nacional patrocinado pelo jornal Correio da Manhã. Do colégio eleitoral, votaram 964 intelectuais de norte a sul e de leste a oeste do país. Meus parabéns!
Vitorioso, Guilherme saca do bolso o escrito há pouco: “ora, ser o príncipe não é o principal. Ao Correio, a minha primeira palavra, no primeiro minuto que vivo à sombra da altíssima investidura por suas nobres colunas sobre mim projetadas. “Príncipe dos Poetas”...Um título simbólico, que só uma simbólica votação pode conferir. A ele ninguém se candidata: “alguém é candidatado”. Não se trata, pois, de eleição, por que não depende de um censo, mas de um consenso; e este é claro – pela sua própria essência, condicionado ao fortuito”.

Telefonemas, cumprimentos, sorrisos e drinks. Por fim, antes de dormir, Urbano pensou em duas ou três coisas – as de sempre: num verso inacabado (contando sílabas poéticas); em como era difícil engolir a faceta menos principesca e glamorosa da vida, no tocante a seu único filho, Guy Sérgio Haroldo Estevão Zózimo Barrozo de Almeida. Pensou, ainda, em Brasília, cidade que seria, em alguns meses, inaugurada e, para qual, deveria continuar a conceber o brasão nos próximos dias. Com a pulga atrás da orelha, receou que seu lugar na literatura brasileira já não fosse mais o dos malditos. Mas o dos combatíveis poderosos.
Secretamente, motivado por uma espécie de pingo ácido que sentia em relação aos homens e às coisas, desejou ter aceito o convite de partir com a trupe dos ciganos.

Efígie em gesso, de Galileo Emendabile. Homemagem a GA em 1959
***
Making off
Por ser bolsista do museu Casa Guilherme de Almeida (Poiesis) no curso de Jornalismo Literário da ABJL (2013/2014), minha pauta haveria de estar relacionada à vida e à obra do poeta, jornalista, tradutor e crítico de cinema, Guilherme de Almeida. Neste caso, como coordenadora do Núcleo de Ação Educativa do museu, estive diariamente imersa em textos do autor, assim como imersa em pesquisas sobre ele e sobre o acervo do museu, sua última residência.
Optei por me orientar em dados e fatos obtidos no livro Pela Cidade (2004), que é uma reunião de crônicas que o autor assinou como “Urbano”, no Diário Nacional. Entre 1927 e 1928, ele foi responsável pela seção de queixas e reclamações deste jornal.
Segundo Frederico Ozanam de Barros, seu biógrafo e organizador do livro, a seção “Pela Cidade” se transformou naquela parte do jornal que o leitor procura antes mesmo de se inteirar de qualquer outro assunto.
Apesar de as crônicas de Urbano serem deliciosos e dramáticos flagrantes de uma São Paulo em fins da década de 20, para este trabalho, baseei-me apenas na introdução e na cronologia da vida de Guilherme de Almeida, ambas escritas por Ozanam e que antecedem o livro em si. Igualmente, baseei-me no ensaio pessoal do poeta, “Meu roteiro sentimental da cidade de São Paulo”, anexado a obra. Este roteiro foi escrito em 1967 a pedido da Companhia Telefônica Brasileira, que pretendia, mas não o fez, incluí-la em listas telefônicas distribuídas aos assinantes.
Como apoio, utilizei, ainda, a biografia “Guilherme de Almeida, Poeta Modernista”, de José Antonio P. Ribeiro.
Movida pelo interesse sobre o movimento de Guilherme de Almeida dentro do campo literário, ou seja, de ter-se eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros para, nas décadas seguintes, tornar-se obscuro, esquecido pela academia. Procurei entender, mais do que explicar, como seria este movimento do ponto de vista do autor durante sua vida, valendo-me de suas memórias. Lembranças de quando chega a São Paulo (1903), na Estação da Luz, até o dia em que recebe a notícia de que foi eleito o Príncipe dos Poetas Brasileiros, em 1959.
Compreender o humano, princípio básico do Jornalismo Literário, foi o que, humildemente, tentei fazer nesta narrativa do real, apoiando-me no contexto histórico, social e cultural de Guilherme de Almeida.
O tempo do discurso se dilui com o tempo psicológico do personagem e com o tempo histórico. Da mesma forma, os espaços real e físico, convivem com o ambiente psicológico do protagonista.
Para quem conhece alguns textos de Guilherme de Almeida, será fácil identificar forte intertextualidade nesta narrativa, evocando termos por ele utilizados, nomes de livros e até mesmo colocando trechos inteiros mesclados criativamente na narrativa.
Finalmente, ressalto que evitei, por um lado, a mitificação do personagem e, por outro, demonstrar preconceito ou tentar moldá-lo num estereótipo: postura desejável para se compreender o outro e a si próprio, como reza o Jornalismo Literário.
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*Karen Kipnis é formada em Letras Português/Hebraico pela Universidade de São Paulo, licenciou-se na Faculdade de Educação após algumas velejadas e alguns anos vivendo em Israel. De volta ao Brasil, reencontra o poeta e amigo Frederico Barbosa, agora diretor da Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (2005) e, a seu convite, coordena e ministra o Projeto Escrevivendo – oficinas de escrita e leitura para o cotidiano, entre 2006 e 2012, em espaços culturais como museus e bibliotecas da cidade da São Paulo. Neste ínterim, Karen e Frederico idealizam e fundam a OS de Cultura Poiesis com outros profissionais da Casa (2008). Coordenou o Núcleo de Ação Educativa da Casa das Rosas e do museu Casa Guilherme de Almeida e, finalmente, entre 2013 e 2014, foi bolsista da Poiesis no curso de pós-graduação em Jornalismo Literário da ABJL, coordenado pelo Prof. Dr. Edvaldo Pereira Lima.
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