top of page

Mike Tyson, tudo o que existe merece perecer

O som e a fúria

O som dos golpes vertiginosos contra o saco de pancada, jabs, diretos e cruzados, baço, fígado e estômago, o gancho contra o queixo faz a cabeça rodopiar, o cérebro se choca contra o crânio – o som do corpo a se estatelar contra o ringue. 1, 2, 3, 4... – o adversário de Michael Gerard, também conhecido como Iron Mike Tyson, cambaleia junto às cordas, mas ainda tenta ficar de pé. Quando o treinador do adversário vê os punhos de Tyson prontos a fulminar seu lutador, o coach joga a toalha de misericórdia.

A fúria, a fúria difusa, a fúria contra todos, (a fúria contra si mesmo), a fúria do mais jovem campeão mundial dos pesos pesados da história do boxe, a fúria contra o pai que não estava lá, a fúria por ter vingado o gueto do Brooklyn, a vergonha de ter vindo do gueto do Brooklyn, o orgulho de ser negro, a pecha de ser negro, o amor da mãe e do pai adotivo, seu treinador Cus D’Amato, a fúria dos nocautes avassaladores, a fúria durante a queda tão meteórica quanto sua ascensão.

O pobre não é apenas invisível. O pobre roto e fedido, dirty Mike, não deve ser visto. Ele deve ser caçado e algemado, peito contra o chão, joelho do coxinha contra a nuca. Assaltar pra comer? Ora, isso é o que há de mais comezinho. Assaltar pra existir, pra ser notado, pra que, na perseguição, o pega-pega da molecada, enfim!, chame a atenção de alguém. Reformatórios e cadeias são assustadores pra burguesada. Cadeias e reformatórios são a extensão do gueto. Vocês já entraram em um prédio abandonado? Paredes descascadas, canos podres, poças d’água, fios elétricos expostos. Ratos, muitos ratos. Era ali que eles queriam que eu brincasse. Eles queriam que eu ficasse confinado ali, que não dissesse nada, que não fizesse nada. Que, sobretudo, eu não saísse daqui. Eu nunca saí, eu sabia que um dia voltaria pra cá, mas, antes, eles teriam que conhecer meu terremoto.

Furtos, roubos, agressões. Era só isso que sabiam de mim. Os juízes, os dedos em riste da sociedade, só me conheciam lendo minha capivara. Mas vocês já viram uma quadrada brilhando à noite? Nego atira e fica surdo, cachorro pára de latir na hora – aquele latido ao longe que sempre tem no gueto do Brooklyn e em qualquer cu do mundo. Nego não faz ideia do que é uma arma na mão. Ei, olha pra mim, filho da puta! Se eu te digo bom dia, meu bem, ela se afasta. O burguês sequer imagina o que é precisar de respeito. Ele logo estende a mão quando encontra alguém. Se eu fizer isso, vocês vão dar um passo pra trás, vão me medir com pavor nos olhos. E se eu quiser conversar com vocês? Eu quero lhes dizer one or two things. A pobreza não faz apenas o estômago roncar, não. Você é um merda, você é um loser, as mulheres não te querem, ninguém te nota – você é aquele soslaio de medo da menina que abraça a bolsa, você é o fedor e o nojo que chegam antes quando os pedestres se afastam, você é o grito de “polícia!”, você é o pivete, a urina no reboco, a seringa vazia no meio-fio. Mas uma vez eu não aguentei, o juiz ali me dando sermão atrás de sermão, daí eu olho bem pra ele, do mesmo jeito que no futuro começaria a ganhar as lutas antes de o gongo soar, fulminando meus adversários com o olhar, eu olho pro juiz, ouçam essa, e lhe pergunto se o senhor sabe que eu cuido de um monte de pombas.

Ora, ora, o falastrão da lei, vejam só!, a matraca da lei não sabe o que dizer. Ele queria que eu dissesse “sim, senhor”, ou então que, mais uma vez, eu ficasse de cabeça baixa, que só balbuciasse e choramingasse. Mas o senhor precisa conhecer minhas pombas, senhor juiz. Elas não são ratos com asas, não. Elas são limpinhas, elas vêm comer na minha boca, levam minhas cartinhas de amor pras vizinhas, são vistosas e imponentes. Agora o senhor me explique, senhor juiz: por que as pombas não têm medo de mim? Por que vocês têm tanto medo de mim? Por que ninguém fica próximo de mim? O senhor gosta de atirar pedras, né? Pois o reverendo, domingo passado, falou sobre aquela passagem em que Jesus fala praquela velharada toda pensar sobre as próprias faltas antes de apedrejar a adúltera. O senhor já fez isso hoje, senhor juiz? O senhor consegue se ver aqui embaixo, sem essa toga, à minha frente? O senhor não quer ouvir quem eu sou, de onde eu venho e o que eu quero? Não seria melhor me julgar depois que o senhor conhecesse a dimensão do que eu sonho? Minhas pombas podem contar isso aí pro senhor. Minha mãe também poderia, senhor juiz, se ela não tivesse que se revezar entre 4 empregos. Eu não sei o que senhor quer, senhor juiz, eu não sei como o senhor se tornou importante, eu não sei o que lhe fez querer julgar quem tá aqui embaixo, quem tá abaixo do senhor. Mas não é só o senhor que quer mais, não. Vamos, me manda de novo praquele lixo de reformatório, me cospe de novo pelo ralo! Eu vou voltar, eu vou entender o que eu tenho a dizer, eu vou, sim, ah, se vou!

Não é sintomático que o talento descomunal de Mike Tyson para o boxe tenha sido descoberto em uma de suas dezenas de passagens por reformatórios? A cumplicidade do Estado administra a sociopatia para dar ao esgoto alguma finalidade. (Tanto melhor para os gângsteres e o show business se a fúria puder gerar e gerir espetáculos.)

Aos 12 anos, Mike já pesa mais de 80 kg e enverga um porte físico completamente desproporcional à sua idade. Aos 15, já como peso pesado, tem início sua trajetória de nocautes acachapantes.

Os diletantes que assistimos a lutas de boxe apenas discernimos os socos e os clinches. Quem procurar os vídeos dos treinamentos de Tyson verá que o pêndulo da esquiva e a mobilidade da cintura e das pernas são a base da defesa e do contra-ataque.

Os leitores e, eventualmente, as leitoras que já saíram na mão com alguém sabem que, no calor da briga, é dificílimo se esquivar de um soco bem dado. O murro corta o ar e dribla facilmente os olhos. Só depois reconhecemos o local da pancada quando a mãe ou a namorada vem colocar um bife gelado sobre o inchaço. Pois bem: imaginem uma sequência de Mike Tyson com a potência e a velocidade de 5 socos por segundo! Cus D’Amato lhe ordena que jamais observe o rosto do adversário. É preciso caçar fixamente os movimentos da musculatura peitoral. Quando o peito se mover, você se esquiva – e bang! Punhos colados ao queixo, Mike, vamos! Tyson traz os lutadores pra si, vai se esquivando como um rato do gueto e, quando o adversário desfere o soco e abre a guarda, o homem de aço e o relâmpago de sua rapidez encaixam um cruzado de esquerda e um direto de direita que desmaiam a própria contagem. [É preciso reinventar a valentia para ser juiz em uma luta de Tyson e (tentar) impedir o lutador de continuar a golpear os adversários já estatelados sobre a lona.]

Quem já assistiu aos ataques de Tyson bem sabe o que é atirar com uma espingarda calibre 12. Consta que, após enfaixar as mãos e calçar as luvas, Tyson transformava as colunas de concreto do ginásio em sparrings.

- I am the most brutal and ruthless champion that has ever been, there’s no one who can stop me, I’m the best ever, there’s no one that can match me! My style is impetuous, my defense is impregnable!

Das 15 primeiras lutas de Mike Tyson como boxeador profissional, apenas 4 passaram do primeiro assalto. Das 11 lutas que terminaram antes de o gongo decretar o fim do primeiro round, 6 acabaram em menos de 1 minuto e 10 terminaram antes de 1 minuto e meio. Todas as 15 lutas em questão foram vencidas por nocaute. (Em 1982, aos 16 anos, Tyson lutou na Junior Olympics e precisou de apenas 8 segundos para nocautear o adversário com um swing de direita contra o queixo.)

Um campeão de 20 anos

No dia 22 de novembro de 1986, com um cartel de 28 lutas, sendo 28 vitórias, 25 nocautes, 2 vitórias por decisão dos árbitros e 1 desqualificação do adversário, o prodígio Michael Gerard Tyson, de apenas 20 anos, desafia o campeão dos pesos pesados, o jamaicano Trevor Berbick. A luta é um verdadeiro massacre. Tyson desfere toda a pletora de sua força e técnica, Berbick só faz provocar clinches, ao que Tyson responde com socos no baço e upper-cuts que levam o jamaicano à lona várias vezes até que o árbitro, aos 2 minutos e 35 segundos do segundo round, decreta o nocaute e transforma o outrora lumpemproletário do Brooklyn no mais jovem campeão mundial dos pesos pesados da história do boxe.

Todos entram no ringue para abraçá-lo e beijá-lo, o dirty Mike outrora invisível, o trombadinha e meliante dos reformatórios, agora é o campeão mais querido de todos e, principalmente, de todas. Mas onde está a mãe de Mike? Onde está seu querido treinador e pai adotivo, o bom e velho Cus D’Amato?

Quando Tyson se sagra campeoníssimo e quer repartir o pão da vitória com aqueles que mais o amam, o lutador descobre a aridez das palavras de Cristo: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos”. (Lucas, 9, 60)

- Por que todos aqueles que eu amo morrem? Por quê, meu Deus?!

Quando um jornalista consegue se esgueirar pela massa de amigos, treinadores, empresários, fãs e oportunistas para obter as primeiras palavras do mais novo campeão mundial dos pesos pesados, assim agradece Mike Tyson:

- Faz um mês que Cus D’Amato, meu pai e inesquecível treinador, nos deixou. Essa vitória, Cus, é pra você, porque eu sei que, aí de cima, você está nos vendo e está muito feliz por mim. Devo isso a você, Cus, eu te amo, pai!

Os cidadãos comezinhos, sobretudo os membros da massa de pequenos-burgueses, não fazem sequer a mais pálida ideia do que é dormir com fome e acordar querendo – ou melhor, exigindo – tudo o que antes era inalcançável. Os bem nascidos se deitam sobre redes e lençóis de seda para, quiçá (e muito de vez em quando), desejarem algo para além da pasmaceira das propriedades de aluguel. Os pobres, cujo horizonte é ceifado a priori, são condenados a uma aridez material análoga à vacuidade de ímpeto de um considerável filão da burguesia que os explora. (Não à toa Oscar Wilde certa vez sentenciou que só há uma classe que pensa mais em dinheiro do que os ricos – ora, só poderiam ser os pobres.) Mas o capitalismo, aqui e ali, permite a ascensão (e a queda) de figuras vorazes e ambiciosas pelos interstícios de seus corredores poloneses. É na ascensão e na queda de alguém como Mike Tyson que parece residir o caráter emancipatório e regressivo de nossa guerra de todos contra todos.

Mike não aceita sua própria condição, um tigre não consegue viver no canil. A explosão de sua fúria ganha sentido, calções e luvas nos ringues. Conforme nocauteia os adversários, Tyson golpeia e afaga a sociedade que antes o expelia e agora o idolatra. A fama e a notoriedade o confundem. Quem não gostaria de ser ovacionado? Quem não quereria um harém a seus pés? Mas, ora, é gozado, antes me vigiavam de outra forma. Vejam só: antes ninguém me notava se eu ficasse lá no meu bueiro. Se eu ficasse quietinho, se já tivesse aprendido meu lugar, se eu mesmo me vigiasse, nenhum coxinha vinha me caçar. Mas se eu ousasse infectar Manhattan com o fedor da minha pele, vixe!, aí a coisa fica feia, aí os coxinhas saem não sei de onde, aparecem viaturas e batalhões num instante. E o curioso, agora, é que trocaram a vigilância: a polícia, as algemas e os retratos falados deram lugar às câmeras dos fotógrafos e da TV. Mas, de uma forma ou de outra, do Cidade Alerta ao TV Fama, eu continuo a ser manchete.

E quem são meus irmãos?

Quem são meus amigos?

Qual delas será minha namorada?

Eu já não sou feio, elas me querem.

Mas o que é que elas querem?

Entrevistas com os treinadores e (supostos) amigos de Mike Tyson relatam uma personalidade tão densa e contraditória quanto sua vida impetuosa. (Ao colosso Tyson corresponde a voz aguda e insegura de Mike.)

Enquanto o árbitro anuncia as regras do combate aos dois boxeadores e demanda honra e decência na luta que só irá começar quando ambos touch gloves e se cumprimentarem, Tyson já nocauteia o oponente com os cruzados de seus olhares. Sua cara de ódio é o semblante da humilhação recorrente – o mesmo semblante que o show business gosta de focalizar para incitar o sonho (rentável) dos telespectadores de que o prodígio de Mike Tyson pode ser imitado (e, quiçá, superado). Quem quer que se oponha a Tyson faz com que ele se lembre do pai que se evadiu quando Mike tinha apenas 2 anos. Será que se eu nocautear o meu pai ele vai voltar? Será que se eu nocautear o meu pai ele vai me respeitar? Será que se eu nocautear o meu pai vou conseguir perdoá-lo? Pai, eu te amo – e te golpeio. As feridas mais profundas pressupõem cicatrizes purulentas. Os pontos que suturam as facadas também legam frestas e flancos pelos quais o rancor e o ressentimento voltam a infeccionar. Tornar-se campeão, milionário e mundialmente reconhecido trouxe a Tyson, durante 4 anos de vitórias, fanfarras e mulheres, a trégua com o buldogue enjaulado no porão de sua memória.

"Um menino veio a mim com uma centelha de interesse. Eu alimento a centelha e ela torna-se uma chama. Eu alimento a chama e ela torna-se um fogo. Eu alimento o fogo e ele se torna uma labareda crepitante."

inscrição no túmulo de Cus D'Amato, pai adotivo de Mike

Aos corpos desfalecidos de seus adversários sobre a lona – corpos em sua maioria negros como os de seus ancestrais e amigos de pobreza dos quais Mike sente falta e dos quais Tyson já não quer se lembrar – se contrapõem os corpos nus das mulheres sobre sua cama king size. Brancas que antes sequer o desprezavam (já que ele não existia), negras que talvez já não o temam (tanto), latinas, asiáticas, índias, eslavas: a cada orgia em suítes presidenciais e limusines, o dinheiro realiza a integração da humanidade que o torpor pós-cocaína e pós-orgasmo volta a cindir.

Mas Mike logo sente que o caos precisa ser domado. O que o Cus faria em meu lugar? O que ele me diria?

Chegou a hora de escolher uma esposa.

Quem diria que o fedido do gueto conseguiria se casar, hein?

Mike está confuso, ele não consegue entender como ter todas as opções gera ainda mais ansiedade do que não ter nenhuma. Eu achei que ia tá tudo resolvido. Antes o que eu queria não tinha nome, o que eu queria não tinha forma. Agora tem todos os nomes e assume a forma que eu quiser. Mas o que é que eu quero? Quem é que eu vou escolher?

Afinidades eletivas: o campeão reconhece a campeã. (Verdade seja dita: os comerciais ajudam Tyson a separar o joio do trigo.) É assim que a bela e bem educada atriz Robin Givens lhe acende o desejo. O nocauteador é nocauteado. O senhor volta a se tornar escravo. (Ora, vocês não imaginariam que o impetuoso Mike Tyson viveria um amor plácido, não é mesmo?)

Quem perde os pais ainda jovem sabe o quanto é forte a vontade de constituir um novo lar. Todo o homem precisa ter um lugar para onde possa voltar.

Minha vida é um ringue aberto: a grande mídia veicula, pari passu, os rounds da relação de Tyson e Givens.

- You know, Mike gosta de me agradar. Ele é muito romântico and full of surprises! Numa noite eu encontro um anel cravejado de diamantes sob o meu travesseiro. Certa manhã, é o ronco do meu novo Porsche que me desperta. Eu te amo, Miky!

Um beijo cinematográfico em rede (inter)nacional enternece os corações de todos.

Home sweet home: dos prédios abandonados do gueto do Brooklyn a um palácio de 4,5 milhões de dólares. (Mano Brown deveria ter aconselhado Tyson: “É muito difícil, mas um ou outro até consegue sair da favela. O problema é que a favela não sai de dentro de você”.)

Um nocaute em rede (inter)nacional enrijece os corações de todos:

- You know, Tyson é um maníaco-depressivo. (Mike está bem ao lado de Robin, o programa está sendo gravado na suíte presidencial de seu palácio.) Tem sido muito, mas muito difícil viver com ele. Minha mãe e eu estamos tentando ajudá-lo, mas, antes de mais nada, é ele que precisa querer se ajudar. Faz tempo que nós não nos entendemos. (Robin olha com pesar para um Mike inusitadamente cabisbaixo.) Eu já não sei o que vai acontecer...

Consta que o menino dirty Mike não gostava muito de voltar para casa. Quando o fazia, ele muitas vezes via sua mãe sendo espancada e abusada pelo(s) namorado(s).

Será por isso que Tyson comprou um enorme tigre siberiano para domá-lo como animal de estimação? (Quão intrincada é a impotência que se converte no ápice do poder!)

O pós-divórcio em rede (inter)nacional divide os corações de todos:

Robin Givens: “Mike Tyson me agrediu diversas vezes. Só que ele sabe onde e como bater para que não haja marcas, para não deixar provas...”

Ewald D’Amato, mãe adotiva de Tyson: “Se eu estivesse no lugar do Mike quando Robin disse todas aquelas coisas, eu teria tapado a boca dela!”

Consta que um dos treinadores de Tyson não conseguia entender como aquele boxeador estupendo, no início da carreira, tremia de medo antes das lutas. “Eu não quero desapontar o Cus, eu não posso, diz pra mim que eu vou ganhar, diz pra mim que eu tenho chance!” E isso se repetia mesmo após sucessivos e incontestáveis nocautes.

O berço quente e confortável do bem nascido não consegue entender o que significa a ausência, a perda e a impotência.

Mike e Givens, a exploração midiática marcou o início e fim do relacionamento

Assistir à mãe sendo continuamente violentada e não poder fazer nada mutila dirty Mike a ponto de o torpor da cola de sapateiro ser a única terapia. O gueto do Brooklyn não fornece a seus desovados a fraternidade paga dos analistas para que as autoilusões ressignifiquem a brutalidade como a depressão que pode ser alopaticamente arrefecida. No gueto, as mulheres são ainda mais espoliadas. Assim, a sociopatologia começa a nocautear Mike com o seu cotidiano.

O menino que assiste ao estupro recorrente de sua mãe sem poder fazer nada, sem poder nocautear e desmaiar e trucidar aquele(s) filho(s) da puta!, sente a culpa como um punhal, sente ódio de si mesmo, sente pena de sua pobre mãe – e, como menino do gueto, como alguém que quer sobreviver, ele começa a desejar as mulheres que, assim parece, não dizem o que realmente querem, elas precisam ser domadas, ah, então elas não tão vítimas quanto eu pensava, minha mãe até que queria tudo aquilo, minha mãe talvez pudesse fazer alguma coisa, e, olha só, e se, de repente, ela até ficasse me esperando pra começar a dar praquele(s) filho(s) da puta sempre que eu abrisse a porta de casa?

A reincidência cotidiana transforma a compaixão de Mike pela mãe em cumplicidade com o(s) carrasco(s). (Cumplicidade incestuosa.) Para que dirty Mike consiga sobreviver, a mãe/vítima também precisa ser culpada. O esquecimento – ou pior, a asfixia da memória – pressupõe a reprodução da violência contra quem é ainda mais fraco. É assim que o darwinismo social seleciona os mais fortes entre os mais fracos. Por um mero acaso, a sociopatia de Mike Tyson pôde ser ejaculada como violência legítima – e lucrativa. Se Michael Gerard não fosse um gênio dos ringues, a América poderia ter listado mais uma personagem em seu inventário de sociopatas. Assim, sempre que Mike amar, sempre que estiver diante de seres mais frágeis e indefesos – diante de Tyson, trata-se da humanidade como um todo –, o adulto voltará a se deparar com o dirty Mike entre lágrimas de impotência e cumplicidade. A ferocidade dessa dor pode ser atestada pelas concussões e cicatrizes de todos aqueles que ousaram enfrentar Mike em um ringue, o ringue que mimetiza a cama e o chão da cozinha (os locais contumazes do estupro de sua mãe), os lutadores que lembram o(s) namorado(s) da mãe de Tyson.

Será que os bem nascidos, os parentes distantes da rainha francesa Maria Antonieta, entenderão que não adianta alimentar Mike Tyson com os brioches do show business?

Os milhões e bilhões de dirty Mikes precisam de lares amorosos – e de perdão. (Na verdade, a tatuagem de Che Guevara que Mike enverga sobre as costelas bem sabe que tudo isso só vai cicatrizar com uma sociedade verdadeiramente outra.)

O naufrágio do matrimônio (business as usual) e os múltiplos compromissos publicitários (dentro e) fora dos ringues começam a fundir o Iron Man. Mesmo a fortaleza Tyson não consegue se manter no topo diante da vontade e da necessidade de transformar cada cômodo de sua vida em negócios lucrativos. Bonés, camisetas, luvas de boxe, calções, tênis, jogos de video game, perfumes – olha como o mundo dá voltas, dirty Mike! –, canetas, participações em (minis)séries, participações em filmes, entrevistas, retrospectivas, discursos, prêmios, doações beneficentes (abatimentos no imposto de renda), empresas, franquias, namoradas plantadas na mídia, paparazzi, indenizações por (supostas) agressões e câmeras quebradas.

(Continua)

________________________________

Legendas e fotos inseridas pelo Jornal O Ensaio. Esse mais textos você encontra também no Portal Heráclito.

*Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

     apoio institucional:
      O ENSAIO nas redes:
  • Facebook Basic Black
  • Twitter Basic Black
bottom of page